Blue Eyes V

segunda-feira, fevereiro 19, 2007














APRESENTAÇÃO EM UMA REUNIÃO DE POETAS
lisieux

Trago em mim a dor de todos os passarinhos presos” – verso de um poema que li num ônibus (infelizmente, não lembro o nome do autor)
Ai de mim se não pregar o evangelho” – Paulo Apóstolo

Bom... vocês devem estar se perguntando porque eu citei essas duas frases, aparentemente sem nenhuma relação. É que muitos não sabem que sou pastora Metodista, além de poeta e que muita gente diz que essas duas atividades são incompatíveis. Sinceramente, às vezes, acho que essas pessoas estão certas.
Mas quero dizer-lhes que trago comigo muitas esperanças: esperança de um futuro melhor, de poder fazer um bom trabalho na minha comunidade de fé, de ter a possibilidade de ajudar a amenizar o sofrimento das pessoas que estão aos meus cuidados, esperança de que a Igreja mundial, como instituição, vença os obstáculos que os homens, os dirigentes cheios de si, colocaram no caminho da pregação, da implantação do Reino de Justiça e de Paz que o Cristo pretendeu inaugurar ainda quando vivia neste mundo, etc. etc.
Quero dizer também que não estou “pregando” aqui... porque não sou dona da verdade, muito menos de Deus, seja que nome ou forma Ele tenha pra cada um de nós, portanto, sei que só o diálogo ecumênico e inter-religioso é capaz de fazer com que superemos nossas diferenças e nos preocupemos mais com o outro e menos com a gente, com nossos pequenos egoísmos e arrogâncias, aprendendo a viver, assim, o verdadeiro amor, o Ágape, ensinado por Jesus.
Mas mesmo tendo todas essas esperanças, sinto-me impotente e frágil. E continua habitando dentro de mim a tristeza, a insatisfação, a vontade irrefreável de voar sempre mais... e mais alto. Permanece a ânsia por realizar sonhos e por saciar desejos que não têm nada a ver com religião e que, por mais que eu tente ignorar, fazer de conta que não existem, continuam a incomodar, a ferir, como asas de pássaros presos que fustigam e machucam o peito, ávidas por sair... garras de aves selvagens que arranham e rasgam, gritando por alcançar a amplidão azul.
Pergunto-me quando vou me aquietar, quando vou conseguir matar o pássaro do desejo, e fazer calar essa desesperada “senhora liberdade” que não se conforma e não se deixa formatar pela sociedade, por nada, nem por ninguém? Quando vou deixar de sonhar com píncaros e colocar, finalmente, os pés no chão?
Sei que posso e que devo pregar, aconselhar, cuidar das minhas ovelhas e ter uma postura digna, dar exemplos de conduta e de espiritualidade.
Mas por dentro, amados, nas insones horas da madrugada, sinto que o vulcão continua ativo... e sua lava inunda e queima o meu interior, sufoca-me e me deixa em agonia!
Se eu fosse uma freira da idade média, certamente estaria ajoelhada sobre bagos de milho, chicoteando minhas costas desnudas, a fim de penitenciar-me por estar ainda tão apegada às “coisas do mundo”, aos poéticos cânticos, em vez de apegar-me apenas ao Evangelho...mas, como estamos em pleno século XXI, como posso “fustigar-me”, com o que posso me “punir” a fim de exorcizar de mim os meus fantasmas?
Existe uma poeta louca que habita os porões de minha alma. Por que ela não se cala? Por que não recolhe seus trapos e seus pedaços de papéis rabiscados e se esconde no mais profundo da minha mente, deixando que a mulher “séria” venha à tona o tempo todo? Por que essa trovadora desvairada não pode ser silenciada, pisoteada, morta? Por que ela insiste em cantar seus versos, adversos, perversos, controversos?
Queria poder amordaçar essa poeta, essa insana criatura que me faz sofrer, que duela o tempo todo com a “outra”, comedida, gentil, religiosa. Queria colocar grilhões inquebrantáveis nos pulsos dessa mulher, a fim de que ela nunca mais escrevesse uma linha sequer de poesia... Queria aprisionar pra sempre essa criatura descabelada, de olhar demente, insaciável a fim de que a pastora pudesse seguir calmamente o seu caminho, como o Homem de Nazaré que “andava fazendo o bem”.
Afinal, de que serve a poesia? A Teologia é mais útil, porque a primeira é fantasia e a segunda é vida eterna... mas essa semente “maligna” insiste em brotar no solo da minha alma... não sou capaz de arrancar essa erva daninha... não sou capaz de calar a trovadora, não sou capaz de esterelizar a semente da poesia.
Lido, desde menina, com palavras... e, para mim, a palavra perde e ganha significado, apenas através do verso... com o qual assino a minha sina de poeta. Sina da qual não posso fugir. Como também não posso fugir da minha vocação religiosa, do meu amor pela Teologia, que também é PALAVRA, essa maiúscula, porque RHEMA, palavra criadora.
Mas se também a poesia é criação, novamente me divido. E, não tenho, portanto, como fugir dessa dualidade. Assim, respondo aos que dizem que pastora e poeta não podem conviver, que eu permaneço, diante da palavra, tão desconcertada e passional como sempre fui... E sigo escrevendo, poesia e sermões...
Tentando com todas as forças levar a Palavra profética àqueles que precisam e a palavra poética a todos quantos ainda sabem sonhar...

E continuo, amados, trazendo no peito uma dor imensa, interminável: a mesma dor incomensurável de todos os passarinhos presos...

lisieux